A fobia ao trabalho e a banalização do horror: o que há por trás das ofensas extremas entre jovens gamers

Existe uma tendência cada vez mais perceptível entre jovens usuários da internet e, especialmente, em comunidades de jogos online: a associação do trabalho e da estabilidade com algo inferior ou até digno de zombaria. Termos como “CLT”, “acordar cedo”, “ser assalariado” viraram motivo de deboche entre adolescentes e jovens adultos que, em tom de ironia, tratam o esforço profissional como fracasso. É um fenômeno que à primeira vista pode parecer só uma piada de mau gosto, mas que na verdade revela uma crise muito mais profunda: a insegurança diante do futuro, do mercado de trabalho e da própria identidade.

Junto dessa aversão simbólica ao trabalho, aparece outro comportamento preocupante: o uso cada vez mais banalizado de ofensas extremas — racismo, homofobia, misoginia, apologia à violência sexual — em ambientes virtuais. São palavras e atitudes que não surgem apenas como insulto, mas como tentativa de provocar impacto, causar repulsa e se fazer notar. A pergunta inevitável é: por que alguém que ainda está formando sua identidade recorre a esse tipo de violência simbólica?

A resposta é multifatorial, mas passa por alguns eixos centrais:

1. Insegurança como combustível para a agressividade

Vivemos uma era em que os jovens estão crescendo com promessas de liberdade criativa, sucesso rápido e fama digital. Mas a realidade é muito mais instável: desemprego, falta de acesso à educação de qualidade, aumento da competitividade e um mercado cada vez mais exigente. Muitos internalizam o medo do fracasso de forma tão profunda que, para se protegerem, começam a atacar tudo aquilo que representa esforço, trabalho ou responsabilidade.

Ao zombar de quem “trabalha com CLT”, não estão apenas criticando o sistema — estão rejeitando a ideia de um futuro que os assusta e para o qual não se sentem preparados. É uma forma de virar as costas antes de serem rejeitados por ele.

2. A busca desesperada por impacto e atenção

Em ambientes como o Valorant, GTA RP, CS2 ou fóruns como Reddit e Discord, a performance vale mais que a pessoa. Ser o mais engraçado, o mais “sem filtro”, o mais “polêmico” se torna uma moeda social. Nesse cenário, o jovem aprende que a forma mais rápida de ser notado é ultrapassando todos os limites — inclusive os da humanidade. Não basta mais ser agressivo: é preciso ser monstruoso. A intenção não é só ofender, mas chocar, porque o choque é a única linguagem que ainda parece funcionar onde tudo já foi dito.

3. Falta de responsabilização e normalização da violência

Muitos desses jovens nunca foram confrontados com a gravidade real das palavras que usam. Em casa, na escola ou entre amigos, raramente enfrentam consequências reais por reproduzirem racismo, homofobia ou misoginia. Os jogos online, com seus ambientes impunes, só reforçam isso. O anonimato funciona como escudo e, ao mesmo tempo, como desumanização: quem está do outro lado não é mais uma pessoa, é só um alvo.

4. Projeção da frustração e ódio internalizado

Outro fator é que muitos desses jovens já se sentem deslocados do mundo. Não se veem representados, não sabem quem são ou o que querem ser, e canalizam essa frustração no ataque ao outro. Quando um jogador LGBT+ fala, ele não é apenas um adversário: ele se torna um símbolo de tudo que esse jovem sente que não pode ser. Quando uma pessoa negra vence uma partida ou ocupa um espaço de destaque, ela ativa ressentimentos que esses jovens sequer entendem de onde vêm, mas que aprenderam a associar a “ameaça”.

Quando tudo vira piada, a crueldade vira norma

Esses comportamentos não são apenas “toxidade” gamer — são sintomas sociais. Eles falam sobre um colapso na construção emocional de uma geração que cresceu conectada, mas sem referências sólidas de pertencimento, responsabilidade e empatia. E que, diante do medo de fracassar ou desaparecer, prefere se tornar agressora para não parecer fraca.

A sociedade precisa olhar para isso não só com punição, mas com estrutura. Com educação emocional, responsabilização proporcional e espaços onde jovens possam lidar com o que sentem sem recorrer ao horror como mecanismo de defesa. Porque quando a ofensa vira alívio, é sinal de que algo já está em colapso — e não é só o jogo.

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